11 de janeiro de 2009

Ideologia, loucura, picaretagem ou tudo isso junto

Freud era pervertido? Tudo indica que sim. Nietzsche era louco? Nos seus últimos anos de vida, com certeza. Marx era um megalomaníaco obcecado em destronar o Deus cristão? As teses de Richard Wurmbrand são um tanto difíceis de refutar. Os tres pensadores podem ser qualificados igualmente de ideólogos?Aí começa minha dúvida.
Primeiro, teríamos que ter um conceito bem definido do que é ideologia. A definição marxista tá fora, porque é feita sob medida para livrar sua própria doutrina e enquadrar todas as demais. Se se entende por ideologia uma doutrina, verdadeira ou falsa não importa (porque para saber disso teríamos antes que examinar as teses de que ela se compõe enquanto teses, isto é, proposições puramente teóricas), dirigida a MUDAR um estado de coisas, isto é, a TRANSFORMAR a realidade, mobilizando-se a vontade das massas, o que só pode ser feito através da PROPAGANDA (que é sempre política), então:
1) não há dúvidas de que a doutrina marxiana e todas as suas derivações são ideologias.De fato, a tese básica de que a história humana caminha inexoravelmente para o estabelecimento definitivo de uma sociedade sem classes, não é uma tese, mas uma CAUSA a ser defendida intransigentemente por seus adeptos, inclusive em detrimento da realidade.
2) o pensamento de Nietzsche não diz como as coisas DEVEM SER, mas propõe uma visão (repito: independentemente de em si mesma ser verdadeira ou falsa), de como elas, num nível metafísico, SÃO. Portanto, esse pensamento, pelo critério acima, não é ideológico.
3) No entanto, as teses de Nietzsche (assim como qualquer tese puramente teórica, seja filosófica seja científica) podem ser empregadas ideologicamente.Por exemplo, quando as análises que Nietzsche faz do cristianismo (por sinal, muito perpicazes e interessantes em alguns casos) se convertem em diretrizes de uma ação política anti-cristã.
É claro que o atacar ou defender causas não necessariamente se constituem em procedimentos ideológicos. Para que sejam ideológicos a defesa ou o ataque de causas, estas têm que ser representadas como algo do interesse de grupos inteiros de pessoas sem que estas, contudo, tenham passado procuração a quem quer que seja para falar em nome delas. Tá excluído, portanto, a atividade advocatícia, que por sinal é muito bem remunerada!Assim, as causas a que se atem o discurso ideológico só podem ser princípios gerais de conduta que os ideológos supõem ser bons para todo mundo. Mais: que eles querem, por meio da propaganda, impor sobre a vontade dos outros com o propósito óbvio de controlar essa vontade e submetê-la aos seus caprichos.Por isso, os princípios pressupostos pela economia de mercado não são ideológicos! Quer você queira, quer não, o que determina objetivamente que algo é útil e, portanto, possui valor de troca, é a lei de oferta e procura! Viole-a e você, como agente econômico, irá à bancarrota! Esta lei não vale ou passa a valer porque o teórico liberal assim o deseja! Por isso também os princípios morais defendidos pela maioria dos conservadores não são ideológicos, justamente porque VIGORAM NOS COSTUMES dos povos ocidentais desde longa data, fazendo parte do corpo de toda uma TRADIÇAO, esta, sim, o objeto de ataque dos ideólogos, que, desse modo, querem nos fazer crer que ela, a tradição, não passa também de uma causa entre outras. Especificamente quanto a Nietzsche, tenho a seguinte opinião: ele foi, sem dúvida, um grande escritor que, ocasionalmente, teve lá seus insights filosóficos, entre os quais eu incluo sua metafísica da vontade de potência, que Nietzsche põe à base da transvaloração dos valores como signo de nobreza do homem que, recusando a "moral dos fracos", cria seus próprios valores. Ora, esse "ideal" só pode provir mesmo de uma mente conturbada.Qualquer pessoa normal sabe que a palavra "vontade" designa a nossa humana capacidade de agir. Alguns filósofos chamam de vontade essa capacidade na medida em que está submetida a regras da razão ou então dirigida a fins que só a razão como tal pode propor. Ok. Se assim, que sentido tem uma "vontade" que atua, metafisicamente, por "detrás" da própria faculdade de agir humana? Pior, que não tem outro fim senão incrementar o seu prório poder? Pior ainda, que não está submetida a qualquer regra e, ademais, se impõe sobre toda regra?Ao menos, Schopenhauer, que falou pela primeira vez de uma "vontade na natureza", entendeu por esta uma força cega e infinita, que não só não possui limite determinado como também não se dirige a qualquer fim, sendo, pois, fonte de todo o Mal. De modo que agir moralmente bem é, em alguma medida, resistir a esse poder em nós, arrefecendo a "nossa" vontade, subtraindo-nos da inclinação, comum a todos os entes, de perdurar em nosso ser. O que só é possivel pela percepção mística de que Ser se identifica com Mal e Nada, com Bem.
***************
Uma prova de que Nietzsche não foi um gênio ou que Deus não existe! hehehehehe:
Deus, sendo omnipotente e omnisciente, não pode permitir que os entes criados pensem absurdos acerca Dele, o Criador.
Ora, Nietzsche, que existiu e era louco, pensava que Deus está morto e que, portanto, não há valores eternos.
Logo, Deus não existe (no máximo, é alucinação de Nietzsche)
Mas se Deus não existe e Nietzsche insistia em atacar quimeras (transvalorando o que, no fim das contas, não vale nada),então Nietzsche é um fanático lutantdo contra moinhos de vento, não um gênio.

Sobre Hegel

A filosofia hegeliana, no todo e nas partes, é um completo embuste. O cara, primeiro, diz que as antinomias (conflitos da razão pura consigo mesma, que Kant descobriu ser uma consequência inevitável da tese semântica que identifica coisas em geral com coisas em si) são inerentes à razão. Conclui daí que o que move a razão não é o fato de ela trazer no seu bojo certos problemas a priori, mas a própria contradição. Ok, se se assume a premissa acima.Depois o filósofo, que acelerou a redação da sua "Ciência da lógica" (livro pouco lido, quase nada compreendido, mas muito mencionado) para poder pagar as contas, identifica o racional com o real.Conclusão incontornável: a própria realidade encerra contradições!Isso é um total disparate: há, certamente, oposições na realidade, mas contradição é uma tal que só tem lugar no discurso, que, se permite um afirmar e um negar sobre um mesmo sujeito, se auto-anula como discurso.O próprio Kant diz que as antinomias se constituem em uma anomalia cuja causa é o pressuposto semântico acima mencionado (que ele chama realismo transcendental) e não a própria estrutura da razão, que está submetida aos princípios básicos da lógica formal (de não contradição, terceiro excluso, identidade, bivalência, modus tollens, modus ponens, dictum de nullo e dictum de omini) A violação desses princípios acarreta a própria destruição do discurso na sua pretensão de validade objetiva, sendo esses princípios, condições necessárias, embora não suficientes, da verdade.Das duas uma, ou Hegel tá errado ou 2000 anos de estudos de lógica e de exercício do puro e simples bom senso foram em vão!E eis aí a fonte mais famosa da porralouquice esquerdopata: "Eu conheço a estrutura profunda do real, ela é a contradição que arrasta a história humana no redomoinho da tese-antítese-síntese; logo nada me resta fazer, como "intelectual", senão transformar essa realidade de modo que ela chegue mais rapidamente ao seu epílogo: o espírito absoluto, a sociedade comunista ou qualquer outra utopia gnóstico-messiânica. Enquanto isso não vêm, faço ´crítica´social e música de protesto"
Um atenuante: houve apropriação indébita de Hegel por Marx, o sujeito que jurava de pé juntos que as condições de vida da classe operária iria piorar mais e mais até suscitar espontaneamente a revolução socialista e a conseqüente abolição da propriedade privada. Dele, que mais se pode esperar!É certo que a idéia de um Espírito absoluto, em Hegel, se refere ao Ser como tal, não se reduzindo a imbróglios políticos.Agora, Hegel escrever tudo o que escreveu, de uma prolixilidade e obscuridade incríveis, para depois concluir no panteísmo! Ou seja, num ateísmo de quem não consegue se livrar da idéia de Deus!Mas ora, se os princípios supremos da filosofia hegeliana são uma contradictio in adjecto, então ele, coerente como todo bom pensador, não poderia chegar a outra coisa senão uma conclusão contraditória (esse coisa spinoziana de Deus sive Natura, hahahahaha). Os erros de Hegel só vêm corroborar que 1) a contradição repugna a Razão e não tem lugar na natureza, 2) que a lógica é a ciência que estuda as leis a que o discurso tem que se submeter para manter-se em sua pretensão de verdade, isto é, para não se auto-anular como discurso teórico, 3) que é uma coisa completamente estapafurdia identificar a natureza com aquilo que, por definição, a transcende, a não ser que o propósito fosse justamente negar a transcendência.

Da desqualificação dos sentidos à recusa da realidade

A desqualificação cartesiana dos sentidos é feita nas Meditações de filosofia primeira, quando o filósofo francês diz que os sentidos, por nos terem enganado alguma vez (ele evoca o fenômeno da refração da luz), não são epistemologicamente confiáveis. Em Regras para direção do intelecto, ele propõe a matemática como organon do entendimento puro para a correção dos dados sensoriais.Conclusão minha: os võos especulativos que Descartes faz no céu supra-sensível são milimetricamente calculados para fazer o entendimento aterrissar, com toda segurança, no aeroporto da física experimental, de onde não será mais preciso decolar, já que se possui um fundamento inconcusso para a ciência: a certeza do cogito, ergo suum, proposição cuja verdade resiste tanto à dúvida natural quanto à dúvida metafísica, da qual não escapam nem mesmo as verdades matemáticas. Numa carta de 28 de junho de 1643, dirigida à rainha Elisabeth, com quem mantinha intenso intercâmbio intelectual, Descartes abre o peito: "E eu posso dizer, em verdade, que a principal regra que sempre observei em meus estudos e aquela que creio ter sido a mais útil para aquisição de todo sorte de conhecimento, consiste em nunca empregar senão pouquíssimas horas, por dia, aos pensamentos que ocupam a imaginação [ao exame de questões científicas. tanto de física quanto de matemática - colchetes meus] e pouquíssimas horas, por ano, aos pensamentos que ocupam apenas o entendimento [ ao uso do entendimento puro, no exame de questões metafísicas ou filosóficas - colchetes meus], reservando todo o resto de meu tempo ao relaxamento dos sentidos e ao repouso do espírito; inclusive eu conto, entre os exercícios da imaginação, todas as conversações sérias e tudo aquilo a que é preciso dar atenção"Entenderam? Descartes fala uma coisa que deveria chocar todo estudante e professor de filosofia: que esta não pode ser uma atividade vulgar, a ser desenvolvida quotidianamente ou, pior, sob à tutela da disciplina acadêmica! Este, ao meu ver, é o lado inequivocamente bom da epístola. O lado "ruim" é que Descartes propõe, sem nenhum constrangimento, a subordinação das questões metafísicas às questões que só se podem formular empírica e matematicamente. Outro aspecto deletério é que ele estimula a vagabundagem estudantil*: espairecer o espírito e relaxar os sentidos são tudo o que essa turba "revolucionária" (que quer transformar a realidade para só depois conhecê-la) sabe fazer, luxos "burgueses" que uma mente teoricamente obstinada, séria e honesta não se pode permitir.Descartes parece aí até um herdeiro direto dos goliardos medievais, protótipos do famigerado intelectual boêmio, crítico da ordem estabelecida e propagandista de “um outro mundo possível” (graças, é claro, às facilidades do prelo e ao conforto proporcionado pela economia de mercado), do qual o ideólogo de esquerda é a expressão mais acabada.
_____________
*Não acredito que Descartes fosse tão pouco dado aos estudos, hehehehe! Dizem que ele tinha boa penetração e desenvoltura nas cortes, mas, definitivamente, ele é um homem de ciência e muito mais afeito aos rigores da escolástica do que às amenidades do turismo cultural.Com certeza era o cdf da escola! O fato é que ele, também, queria impressionar a tal Elisabeth e, como não poderia deixar de ser, um quê de boêmia e de proximidade do homem ordinário, "do povo", amante dos momentos singelos da vida, sempre caem bem nessa hora.

O emblema metafísico da condição humana

Embora não comportem nenhuma solução positiva e definitiva (e foi isso que Kant procurou mostrar na Crp), o fato mesmo de emanarem da própria razão humana e esta ser obrigada, se quiser se furtar ao dogmatismo e ao ceticismo fácil, a provar sua insolubilidade (também isto é o que Kant nos ensina), deixa bem claro o quanto os problemas ditos metafísicos - por mais toscos que sejam em sua formulação - são relevantes para a nossa própria auto-consciência.
Essas questões nos acossam, sobretudo quanto estamos em "crise existencial", ou seja, quando o "sentido" do existir como tal se torna algo problemático. Em termos heideggerianos, quando o sentido do Ser é, literalmente, sentido pelo homem, recebido afetivamente, o que nos põe diante do abismo do Nada e da possibilidade de "não mais estar aí".
Fechar os olhos para as questões metafísicas, fixando-se obstinadamente sobre as nossas carências materiais, é LOUCURA tanto quanto (ou até muito mais que) ser sugado por elas, descuidando-se por completo das exigências da vida quotidiana.Quem lhes é indiferente perde toda a autenticidade enquanto ser humano, transformando-se em outro que ele mesmo.E isso que é ALIENAÇÃO RADICAL: o cara deixa de ser ELE PRÓPRIO, esquivando-se do peso existencial que tal condição implica, para ser uma OUTRA COISA entre outras (líder sindical, pedreiro, médico ou policial ou ... salvador da humanidade)
Não podemos ter uma exata medida da nossa finitude, senão por comparação com o infinito transcendente, por força do qual somente somos obrigados a tomar consciência de que há um LIMITE para o humano, mesmo para o demasiado humano.
Querer ultrapassar esse limite, esse métron, é o que os gregos antigos chamavam de hybris, uma falta grave (soberba impiedade) cometida contra os deuses imortais, que, para se vingarem, fazem o destino cego se voltar contra o infrator original (ou seus descendentes), mesmo que este, do ponto de vista moral, seja um sujeito digno de apreço, a cujos atos mais virtuosos se seguirão conseqüências imprevisíveis e desastrosas.
Marx, pretendendo empunhar o cetro da justiça eterna e destronar o Deus cristão, acabou por patologicamente incorporar a némesis divina, sob a forma de um ódio ressentido à obra do Criador. Maior soberba que essa não consigo imaginar. E veja quanta tragédia ele trouxe para os membros de sua família e até para algumas pessoas que faziam parte do seu círculo de amizade.
A tragédia de Marx, infelizmente, se estendeu a toda humanidade: 150 milhões de mortos causados por uma utopia insana provocam em mim as mesmas paixões que acometiam os espectadores da poesia trágica de Sófocles e Eurípedes: terror e compaixão, só que com o agravante de que hoje ela não permite nenhuma catarse da nossa alma, exatamente porque o drama é real e os personagens são representados compulsoriamente pela própria platéia.

Metafísica, pensamento revolucionário e relativismo moral.

Seguem, doravante, alguns textos que escrevi sob a forma de comentários na comunidade do Orkut "Marx é inquestionável"
****************** A chave para se entender a mentalidade revolucionária, e não apenas o marxismo, é exatamente essa apontada por Voegelin: a proibição do questionar metafísico, questionar esse que orientou a especulação filosófica desde os gregos e que foi, por assim dizer, arrefecendo sob a influência, cada vez mais forte, de um pensamento esquizofrênico que acabou se voltando para o sujeito e a subjetividade humanos, em detrimento da própria realidade, que, em seu todo, ultrapassa (transcende) o mundo imediato dos sentidos.
Isso já transparece no vocabulário cartesiano, que, a despeito de se mover dentro dos marcos definidos pelo pensamento medieval, para o qual o fundamento (o subjectum, o hypokeimenon) é sempre o modo de ser em si e por si da res (coisa)) - em oposição ao modo de ser objetivo, próprio das coisas enquanto mero conteúdo de pensamento - , privilegia a capacidade representativa (pensar para Descartes é representar) do homem e tudo que é posto como correlato de nossas representações (idéias), que Descartes chama também de realidade objetiva.
A partir de então a res cogitans não apenas se torna fundamento, mas um fundamento inconcusso, sobre o qual se mantém tudo o mais, tanto a res extensa quanto a res infinita.A posição cartesiana sustenta que tudo que se pode conhecer apoditicamente acerca da natureza e de Deus está atrelado à certeza de si como sujeito ou substância pensante. Embora Descartes, de certa forma, desqualifique os sentidos, apenas o faz para mostrar que o papel do intelecto é corrigir o que, nesse domínio, é intrinsecamente ilusório, fazendo com que todo questionar metafísico desemboque, ao fim e ao cabo, na elaboração de procedimentos matemáticos para a pesquisa empírica.
Há uma carta interessante de Descartes, dirigida à rainha da Suécia, em que ele diz que a especulação metafísica só pode ocorrer em poucos momentos da vida e que todo o tempo restante deve ser dedicado às questões que concernem à imaginação (isto é, ás questões científicas) e aos afazeres quotidianos, a que nenhum mortal, evidentemente, pode de todo se furtar. Não é à toa que a reflexão cartesiana sobre problemas morais é extremamente incipiente, reduzindo-se, no fim das contas, à decisão voluntária de por tudo sob parêntesis, a famosa dúvida metafísica ou hiperbólica, a qual, curiosamente, se apóia da hipótese de um Deus enganador, embusteiro, da qual temos de desvencilharmos através da conquista de uma verdade inabalável (o bem conhecido "se duvido, eu penso; e se penso, eu necessariamente existo enquanto substância pensante).
O ataque moderno à transcendência do ser é continuado por Immanuel Kant, que, não obstante, reconhece que a metafísica é não só possível mas mesmo efetiva enquanto uma mera propensão (ele usa o termo alemão "Anlage") da razão humana. Para ele, a metafísica, assim como a matemática, nada mais é que o discurso logicamente articulado acerca de problemas a priori constitutivos da razão pura, para cuja solução esta é inevitavelmente compelida sem, no entanto, ter garantia alguma de que, e como, os objetos de suas perguntas são possíveis. Daí, a necessidade de uma crítica da razão pura teórica.
Como ciência, diz Kant, a metafísica é possível se, e somente se, abandonar o "soberbo nome de ontologia", ciência do ente enquanto ente (dos objetos em geral), e se restringir a uma tarefa mais modesta, a saber, a de expor os objetos da experiência (os fenômenos) em conceitos puros do entendimento, tarefa que cabe à parte da lógica transcendental denominada por ele analítica transcendental, que é uma teoria das condições de possibilidade dessa experiência. Também aqui a metafísica é reduzida a um cânon do uso empírico do entendimento, com vistas a explicar a eficácia heurística dos procedimentos metodológicos empregados pela física moderna.
Tanto Kant quanto Descartes, porém, não negam a existência de Deus: para o primeiro, a idéia de Deus é a idéia de um ente incondicionado com que a razão inevitavelmente topa por força de uma máxima lógica que exige, para qualquer item condicionado do entendimento, a busca da totalidade das condições e sua unidade absoluta, idéia que, embora destituída de significação objetiva de um ponto de vista teórico, refere-se a um objeto necessário da vontade, na medida em que esta é determinada ao cumprimento do dever pelo imperativo categórico. Para o segundo, Deus é, ao menos, a garantia última da adequação das nossas representações às próprias coisas, isto é, o fundamento supremo da verdade e o mantenedor da ordem cósmica.
O materialismo do século XIX é o responsável pela rejeição completa de Deus e da realidade transcendente. Pois, agora, Deus nem pode desempenhar um papel heurístico na pesquisa experimental (como uma idéia em si problemática, mas em vista da qual podemos nos orientar na inquirição dos fenômenos) nem pode ser postulado como condição de possibilidade do sumo bem do homem (a felicidade como prêmio máximo a uma vida moralmente boa).O homem não é mais livre, sendo apenas um joguete nas mãos de forças naturais e sociais. A alma do homem também não é mais imortal, pois este, e todos os valores que alimentam sua vida espiritual, é concebido como um arranjo provisório e contingente, útil para a perpetuação da espécie, mas dispensável tão logo a "natureza" ou a "história" alcance os seus propósitos. Nossa existência individual é passageira e efêmera. Não nos resta, então, outra saída que sacrificar nossa vida pessoal ao "bem" da coletividade, eufemismo para espécie humana. Nesse contexto, a mens revolubilis é aquela que, seduzida pela vã presunção de conhecer toda a realidade (reduzida ao mundo dos sentidos), não tem outro fim supremo senão transformá-la, isto é, ajudar na precipitação do "mundo que virá", admirável aos seus olhos, terrível aos olhos daqueles que, conhecendo o limite do humano, sabem o abismo incomensurável que separa o infinito transcendente do finito imanente. Não nos enganemos: todo espírito revolucionário é um gnóstico. Um exemplo claro disso temos na crítica de Marx ao sistema capitalista e na tese (na verdade, de Proudhon) segundo a qual a propriedade privada (desnecessário dizer dos meios de produção) é em si um roubo.Ora, a idéia de roubo pressupõe a idéia de propriedade. A rigor, roubo é uma espécie de propriedade, a propriedade indébita ou ilegítima, sendo a propriedade legítima um direito natural do homem como tal, o direito de ter algo como seu, uma vez que, desde que considerado útil e, por conseguinte, objeto de desejo, algo não pode ser ao mesmo tempo em si inapropriável (uma res nulius).
Marx evidentemente troca o gênero pela espécie, engatando a isso um outro absurdo: a idéia de propriedade coletiva, pois dizer que todos possuem algo (cujo uso justo seria o uso comum) é o mesmo que dizer que esse algo não é de ninguém e que, portanto, é em si inapropriável. Sem uma esfera externa de liberdade, o homem deixa de ser homem. Essa esfera abrange, além da propriedade ou direito de posse (de ter algo como seu, isto é, para uso exclusivo), também o direito à integridade de seu corpo (direito à vida) e o direito à honra (isto é, á personalidade moral e jurídica), que é o direito de ser considerado, antes de qualquer decisão judicial em contrário, pessoa irrepreensível, o que, em última instância, é a idéia de presunção de inocência conjugada à idéia de imputalibilidade das ações livres (pelas quais a pessoa honrada tem responsabilidade).
Enfim, se nenhuma ação é imputável, se nenhuma coisa útil pode ser possuída e se o próprio corpo não pode ocupar um lugar no espaço, as palavras "roubo", "furto", "homicídio" e "calúnia" teriam que ser banida de nosso vocabulário jurídico e, em conseqüência, NINGUÉM PODERIA LEGITIMAMENTE ALEGAR TER SOFRIDO UMA INJUSTIÇA.
Se Marx tiver razão, todos os mais caros valores morais seriam quimeras sem sentido e a raça humana não passaria de um bando de loucos a se baterem uns contra os outros nesse minúsculo rincão do Universo. E isso, obviamente, incluiria o dito cujo e sua utopia socialista!