11 de janeiro de 2009

Da desqualificação dos sentidos à recusa da realidade

A desqualificação cartesiana dos sentidos é feita nas Meditações de filosofia primeira, quando o filósofo francês diz que os sentidos, por nos terem enganado alguma vez (ele evoca o fenômeno da refração da luz), não são epistemologicamente confiáveis. Em Regras para direção do intelecto, ele propõe a matemática como organon do entendimento puro para a correção dos dados sensoriais.Conclusão minha: os võos especulativos que Descartes faz no céu supra-sensível são milimetricamente calculados para fazer o entendimento aterrissar, com toda segurança, no aeroporto da física experimental, de onde não será mais preciso decolar, já que se possui um fundamento inconcusso para a ciência: a certeza do cogito, ergo suum, proposição cuja verdade resiste tanto à dúvida natural quanto à dúvida metafísica, da qual não escapam nem mesmo as verdades matemáticas. Numa carta de 28 de junho de 1643, dirigida à rainha Elisabeth, com quem mantinha intenso intercâmbio intelectual, Descartes abre o peito: "E eu posso dizer, em verdade, que a principal regra que sempre observei em meus estudos e aquela que creio ter sido a mais útil para aquisição de todo sorte de conhecimento, consiste em nunca empregar senão pouquíssimas horas, por dia, aos pensamentos que ocupam a imaginação [ao exame de questões científicas. tanto de física quanto de matemática - colchetes meus] e pouquíssimas horas, por ano, aos pensamentos que ocupam apenas o entendimento [ ao uso do entendimento puro, no exame de questões metafísicas ou filosóficas - colchetes meus], reservando todo o resto de meu tempo ao relaxamento dos sentidos e ao repouso do espírito; inclusive eu conto, entre os exercícios da imaginação, todas as conversações sérias e tudo aquilo a que é preciso dar atenção"Entenderam? Descartes fala uma coisa que deveria chocar todo estudante e professor de filosofia: que esta não pode ser uma atividade vulgar, a ser desenvolvida quotidianamente ou, pior, sob à tutela da disciplina acadêmica! Este, ao meu ver, é o lado inequivocamente bom da epístola. O lado "ruim" é que Descartes propõe, sem nenhum constrangimento, a subordinação das questões metafísicas às questões que só se podem formular empírica e matematicamente. Outro aspecto deletério é que ele estimula a vagabundagem estudantil*: espairecer o espírito e relaxar os sentidos são tudo o que essa turba "revolucionária" (que quer transformar a realidade para só depois conhecê-la) sabe fazer, luxos "burgueses" que uma mente teoricamente obstinada, séria e honesta não se pode permitir.Descartes parece aí até um herdeiro direto dos goliardos medievais, protótipos do famigerado intelectual boêmio, crítico da ordem estabelecida e propagandista de “um outro mundo possível” (graças, é claro, às facilidades do prelo e ao conforto proporcionado pela economia de mercado), do qual o ideólogo de esquerda é a expressão mais acabada.
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*Não acredito que Descartes fosse tão pouco dado aos estudos, hehehehe! Dizem que ele tinha boa penetração e desenvoltura nas cortes, mas, definitivamente, ele é um homem de ciência e muito mais afeito aos rigores da escolástica do que às amenidades do turismo cultural.Com certeza era o cdf da escola! O fato é que ele, também, queria impressionar a tal Elisabeth e, como não poderia deixar de ser, um quê de boêmia e de proximidade do homem ordinário, "do povo", amante dos momentos singelos da vida, sempre caem bem nessa hora.

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