Seguem, doravante, alguns textos que escrevi sob a forma de comentários na comunidade do Orkut "Marx é inquestionável"
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A chave para se entender a mentalidade revolucionária, e não apenas o marxismo, é exatamente essa apontada por Voegelin: a proibição do questionar metafísico, questionar esse que orientou a especulação filosófica desde os gregos e que foi, por assim dizer, arrefecendo sob a influência, cada vez mais forte, de um pensamento esquizofrênico que acabou se voltando para o sujeito e a subjetividade humanos, em detrimento da própria realidade, que, em seu todo, ultrapassa (transcende) o mundo imediato dos sentidos.
Isso já transparece no vocabulário cartesiano, que, a despeito de se mover dentro dos marcos definidos pelo pensamento medieval, para o qual o fundamento (o subjectum, o hypokeimenon) é sempre o modo de ser em si e por si da res (coisa)) - em oposição ao modo de ser objetivo, próprio das coisas enquanto mero conteúdo de pensamento - , privilegia a capacidade representativa (pensar para Descartes é representar) do homem e tudo que é posto como correlato de nossas representações (idéias), que Descartes chama também de realidade objetiva.
A partir de então a res cogitans não apenas se torna fundamento, mas um fundamento inconcusso, sobre o qual se mantém tudo o mais, tanto a res extensa quanto a res infinita.A posição cartesiana sustenta que tudo que se pode conhecer apoditicamente acerca da natureza e de Deus está atrelado à certeza de si como sujeito ou substância pensante. Embora Descartes, de certa forma, desqualifique os sentidos, apenas o faz para mostrar que o papel do intelecto é corrigir o que, nesse domínio, é intrinsecamente ilusório, fazendo com que todo questionar metafísico desemboque, ao fim e ao cabo, na elaboração de procedimentos matemáticos para a pesquisa empírica.
Há uma carta interessante de Descartes, dirigida à rainha da Suécia, em que ele diz que a especulação metafísica só pode ocorrer em poucos momentos da vida e que todo o tempo restante deve ser dedicado às questões que concernem à imaginação (isto é, ás questões científicas) e aos afazeres quotidianos, a que nenhum mortal, evidentemente, pode de todo se furtar.
Não é à toa que a reflexão cartesiana sobre problemas morais é extremamente incipiente, reduzindo-se, no fim das contas, à decisão voluntária de por tudo sob parêntesis, a famosa dúvida metafísica ou hiperbólica, a qual, curiosamente, se apóia da hipótese de um Deus enganador, embusteiro, da qual temos de desvencilharmos através da conquista de uma verdade inabalável (o bem conhecido "se duvido, eu penso; e se penso, eu necessariamente existo enquanto substância pensante).
O ataque moderno à transcendência do ser é continuado por Immanuel Kant, que, não obstante, reconhece que a metafísica é não só possível mas mesmo efetiva enquanto uma mera propensão (ele usa o termo alemão "Anlage") da razão humana. Para ele, a metafísica, assim como a matemática, nada mais é que o discurso logicamente articulado acerca de problemas a priori constitutivos da razão pura, para cuja solução esta é inevitavelmente compelida sem, no entanto, ter garantia alguma de que, e como, os objetos de suas perguntas são possíveis. Daí, a necessidade de uma crítica da razão pura teórica.
Como ciência, diz Kant, a metafísica é possível se, e somente se, abandonar o "soberbo nome de ontologia", ciência do ente enquanto ente (dos objetos em geral), e se restringir a uma tarefa mais modesta, a saber, a de expor os objetos da experiência (os fenômenos) em conceitos puros do entendimento, tarefa que cabe à parte da lógica transcendental denominada por ele analítica transcendental, que é uma teoria das condições de possibilidade dessa experiência. Também aqui a metafísica é reduzida a um cânon do uso empírico do entendimento, com vistas a explicar a eficácia heurística dos procedimentos metodológicos empregados pela física moderna.
Tanto Kant quanto Descartes, porém, não negam a existência de Deus: para o primeiro, a idéia de Deus é a idéia de um ente incondicionado com que a razão inevitavelmente topa por força de uma máxima lógica que exige, para qualquer item condicionado do entendimento, a busca da totalidade das condições e sua unidade absoluta, idéia que, embora destituída de significação objetiva de um ponto de vista teórico, refere-se a um objeto necessário da vontade, na medida em que esta é determinada ao cumprimento do dever pelo imperativo categórico. Para o segundo, Deus é, ao menos, a garantia última da adequação das nossas representações às próprias coisas, isto é, o fundamento supremo da verdade e o mantenedor da ordem cósmica.
O materialismo do século XIX é o responsável pela rejeição completa de Deus e da realidade transcendente. Pois, agora, Deus nem pode desempenhar um papel heurístico na pesquisa experimental (como uma idéia em si problemática, mas em vista da qual podemos nos orientar na inquirição dos fenômenos) nem pode ser postulado como condição de possibilidade do sumo bem do homem (a felicidade como prêmio máximo a uma vida moralmente boa).O homem não é mais livre, sendo apenas um joguete nas mãos de forças naturais e sociais. A alma do homem também não é mais imortal, pois este, e todos os valores que alimentam sua vida espiritual, é concebido como um arranjo provisório e contingente, útil para a perpetuação da espécie, mas dispensável tão logo a "natureza" ou a "história" alcance os seus propósitos. Nossa existência individual é passageira e efêmera. Não nos resta, então, outra saída que sacrificar nossa vida pessoal ao "bem" da coletividade, eufemismo para espécie humana. Nesse contexto, a mens revolubilis é aquela que, seduzida pela vã presunção de conhecer toda a realidade (reduzida ao mundo dos sentidos), não tem outro fim supremo senão transformá-la, isto é, ajudar na precipitação do "mundo que virá", admirável aos seus olhos, terrível aos olhos daqueles que, conhecendo o limite do humano, sabem o abismo incomensurável que separa o infinito transcendente do finito imanente.
Não nos enganemos: todo espírito revolucionário é um gnóstico.
Um exemplo claro disso temos na crítica de Marx ao sistema capitalista e na tese (na verdade, de Proudhon) segundo a qual a propriedade privada (desnecessário dizer dos meios de produção) é em si um roubo.Ora, a idéia de roubo pressupõe a idéia de propriedade. A rigor, roubo é uma espécie de propriedade, a propriedade indébita ou ilegítima, sendo a propriedade legítima um direito natural do homem como tal, o direito de ter algo como seu, uma vez que, desde que considerado útil e, por conseguinte, objeto de desejo, algo não pode ser ao mesmo tempo em si inapropriável (uma res nulius).
Marx evidentemente troca o gênero pela espécie, engatando a isso um outro absurdo: a idéia de propriedade coletiva, pois dizer que todos possuem algo (cujo uso justo seria o uso comum) é o mesmo que dizer que esse algo não é de ninguém e que, portanto, é em si inapropriável. Sem uma esfera externa de liberdade, o homem deixa de ser homem. Essa esfera abrange, além da propriedade ou direito de posse (de ter algo como seu, isto é, para uso exclusivo), também o direito à integridade de seu corpo (direito à vida) e o direito à honra (isto é, á personalidade moral e jurídica), que é o direito de ser considerado, antes de qualquer decisão judicial em contrário, pessoa irrepreensível, o que, em última instância, é a idéia de presunção de inocência conjugada à idéia de imputalibilidade das ações livres (pelas quais a pessoa honrada tem responsabilidade).
Enfim, se nenhuma ação é imputável, se nenhuma coisa útil pode ser possuída e se o próprio corpo não pode ocupar um lugar no espaço, as palavras "roubo", "furto", "homicídio" e "calúnia" teriam que ser banida de nosso vocabulário jurídico e, em conseqüência, NINGUÉM PODERIA LEGITIMAMENTE ALEGAR TER SOFRIDO UMA INJUSTIÇA.
Se Marx tiver razão, todos os mais caros valores morais seriam quimeras sem sentido e a raça humana não passaria de um bando de loucos a se baterem uns contra os outros nesse minúsculo rincão do Universo. E isso, obviamente, incluiria o dito cujo e sua utopia socialista!
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