A questão da existência ou não de Deus não é uma questão a que caiba a ciência responder, se se entende por ciência a investigação experimental da natureza a partir de princípios matemáticos. Isto pode ser suficientemente esclarecido a partir dos dois filósofos que, indubitavelmente, marcaram os pontos de inflexão do pensamento Ocidental: Aristóteles e Kant.
Para este, a idéia de Deus é a representação discursiva de um objeto incondicionado, isto é, de um objeto que, por definição, é empiricamente impossível, porque, como tal, transcende à receptividade dos nossos sentidos, cujos únicos objetos são os fenômenos. Ora, a impossibilidade empírica não se opõe, por contradição, à possibilidade lógica, de modo que nada podemos concluir acerca do que extrapola o domínio dos fenômenos a não ser que é um ens rationis. Pois os noumena, para os quais "não se pode obter absolutamente nenhuma intuição correspondente", "não podem ser contados entre as possibilidades, embora nem por isso tenha que fazer-se passar por impossíveis" (KrV, B 347). Sendo assim, proposições teóricas acerca desses objetos, sobre os quais recaiu, segundo o filósofo alemão, todo o interesse da metafísica tradicional, são indecidíveis, isto é, sua verdade ou falsidade não pode ser, em princípio, provada. Portanto, fica vedado à razão teórica, cujo emprego legítimo está restrito ao domínio dos objetos empiricamente possíveis, conhecer o que quer que seja acerca de Deus, de tal modo que admitir ou recusar a sua existência ( que se constitui num problema inevitável, porém insolúvel, para a razão teórica, pura ou empiricamente aplicada) é um tipo de assentimento que só se pode justificar moralmente, isto é, como um postulado da razão prática e, por conseguinte, como um ato de fé.
Já Aristóteles assinalava que o discurso científico ou apodítico pressupõe necessariamente princípios, ou seja, premissas verdadeiras e primeiras, entre as quais se encontram as hipóteses ou postulados, proposições fundamentais em virtude das quais se é forçado, como condição mesma do procedimento demonstrativo, a assumir a existência dos objetos desse discurso. Mas, segundo ele, para admitirmos ou mesmo constatarmos que “x” existe, temos que dizer o ente, e este dizer é semanticamente equívoco, de modo que, quando afirmamos ou negamos algo do ente, enunciamos que ele é (ou não é) ou segundo alguma das dez categorias, ou por si ou por outro, ou verdadeiro ou falso, ou em potência ou em ato, ou uma privação ou possessão. Ora, a reflexão sobre os múltiplos sentidos do ente é uma reflexão sobre os modos como as coisas se manifestam ao entendimento (nous), isto é, uma teoria do ser do ente, tradicionalmente designada pelo termo "ontologia". Com efeito, os princípios da ciência (que, além dos postulados, incluem os axiomas e as definições) são verdades que se impõem imediata e necessariamente ao intelecto humano, cuja capacidade de apreensão é condição necessária, embora não suficiente, de nossa também humana capacidade de demonstração ( isto é, de ciência). Ambas as capacidades, nous kai episteme, é o que Aristóteles chama de sabedoria (sophia), que é o ideal de unidade e perfeição do conhecimento científico e, portanto, o fim supremo a que é compelida, por sua própria natureza, a parte científica (epistemonikon) da razão humana (dianoia). O objeto dessa sabedoria seria, pois, o fundamento último sobre o qual repousam os princípios e tudo o que pode ser cientificamente conhecido a partir deles, ou seja, o primeiro princípio de todas as coisas. Ocorre que tal objeto só pode se dar ao intelecto divino, isto é, de um ser imediatamente necessário, objeto que, na ordem da natureza (phisis), é último para nós. À sabedoria humana só resta contemplar o ser em geral - que é o horizonte no qual somente podemos dizer (e mesmo assim de maneira ambígua) o ente -, ou seja, o manifestar-se de tudo(inclusive a finitude do homem) que depende desse primeiro princípio. Em resumo, a possibilidade do conhecimento científico, segundo Aristóteles, pressupõe não apenas princípios em si verdadeiros e o caráter essencialmente equívoco do ser dos entes, mas também, e sobretudo, um ente absolutamente necessário (primeiro motor imóvel)*, para cujo intelecto o primeiro princípio de todas as coisas é imediatamente dado como objeto.
Se para Aristóteles e, portanto, para todos os filósofos que antecederam Kant, Deus é, simultaneamente, o pressuposto necessário do próprio desejo humano de sabedoria e o fundamento último sem o qual o conhecimento científico seria impossível, ou seja, destituído a priori de princípios, é porque re-conheceram que o homem é mortal e que, nessa condição, a busca da verdade equivale à nobre aspiração à sabedoria. Sem essa inspiração divina, que nos abre para o horizonte do ser, o homem não dirigiria humildemente o olhar para o solo dos entes, e a vida contemplativa, no ápice de seu esplendor (philo-sophia), se transformaria na mais soberba impiedade. Por essa razão, a metaphysica generalis dos escolásticos se constituía numa propedêutica à teologia racional, isto é, a um saber sobre Deus que só pode ser buscado pela criatura finita se esta for movida pelo Deus da sabedoria, tal como se manifestou na religião revelada, e co-movida pelo amor à verdade, isto é, pelos sentidos do ser, tal como desvelados no seio da cultura grega.
Da mesma maneira, Kant, ao demonstrar que a razão teórica pura é incapaz de chegar a um conhecimento sintético a priori objetivamente válido acerca de coisas em si e, por conseguinte, que a teologia é impossível como ciência, recusa “o soberbo nome de ontologia” à analítica transcendental, que, segundo ele, é uma modesta, porém heuristicamente fértil, teoria da exposição dos fenômenos em conceitos puros do entendimento, vale dizer, uma teoria das condições de possibilidade da experiência e seus objetos bem como um canon material para investigação experimental da natureza, isto é, para a pesquisa empírica, cujo único organon é (ao menos foi na época de Galileu e Newton) a matemática. Mas essa recusa aplaina o terreno para uma metafísica dos costumes e uma teologia moral, ou seja, uma metaphysica specialis cujo objeto é a fé racional na eficácia das leis da liberdade e, por conseguinte, na realidade prática do supremo bem humano, cujas condições são a existência de Deus e a imortalidade da alma. Pois, segundo ele, tais objetos de fé são postulados práticos necessários apenas para uma vontade moralmente determinada, isto é, para uma razão pura constituída formalmente pelo imperativo categórico. Se efetiva, esta razão prática pura impõe ao arbítrio humano as próprias máximas do dever como um fins objetivamente necessários** e o obriga a representar a unidade suprema dessas múltiplas máximas na vontade de um legislador sumamente bom e justo***.
Sendo assim, pergunto-me: O que quer Dawkins quando, apoiando-se na autoridade da ciência (mas não necessariamente praticando ciência), sustenta que Deus não existe e que acreditar no contrário é puro delírio? Vamos por exclusão. Não quer, evidentemente porque não pode, discorrer sobre Deus teoricamente. E não pode, porque nenhum discurso teórico acerca de Deus é suscetível de passar pelo crivo da experiência****. E porque também o único discurso verdadeiramente teórico acerca de Deus, que é o discurso teológico, só tem significação enquanto se refere a uma realidade transcendente, ou seja, se funda na consciência, própria e originária da alma humana, da totalidade absoluta dos entes, da qual a realidade empírica conhecida é uma parte ínfima. Nas palavras de um célebre historiador, as religiões superiores, entre as quais está o cristianismo, “concordam que os fenômenos, dos quais temos conhecimento, não se explicam. Tais fenômenos devem ser apenas um fragmento de um universo, o resto do qual permanece obscuro para nós; a chave da explicação do todo está oculta na parte que não percebemos ou compreendemos. Assim, o universo onde nos encontramos é um mistério” (TOYNBEE, A religião e a história). Ainda segundo Toynbee, “nesse misterioso universo, há uma coisa de que o homem pode ter a certeza. O homem não é, certamente, a presença espiritual máxima no Universo (...)A sua própria presença no Universo é, para ele, um fato consumado que se verifica independente de qualquer escolha ou atitude sua”, de modo que não se pode negar*****, sob pena de cairmos numa trágica hybris, que “há uma presença no Universo espiritualmente maior do que o próprio homem” (Ibidem).
Dawkins também não é movido a essa cruzada contra o cristianismo (e, de modo geral, contra toda religião monoteísta) por razões morais minimamente defensáveis, mas por acreditar (essa é sua "fé") que a ciência pode e deve ser politicamente instrumentalizada, fornecendo as bases teóricas de uma engenharia social, isto é, a justificação de uma seita pagã da qual ele, evidentemente, seria o sumo sacerdote. Nesse sentido, a teologia e a fé cristãs, que são o “bode expiatório” do ateísmo militante e insano de Dawkins, são acusadas de irracionalidade e dogmatismo exatamente por não se converterem ao seu ideal gnóstico-positivista, em vista do qual ele cínica e levianamente nos promete a salvação e a bem-aventurança no aqui e agora, promessa que assinala, de forma indelével, a perversão de caráter desses “reformadores do mundo”.
Disso tudo só posso concluir uma coisa: O sr. Dawkins é um metafísico megalomaníaco incorrigível, loucura que Kant, na Antropologia de um ponto de vista pragmático, denomina vesânia (Aberwitz), que é um dos quatro tipos de distúrbios mentais (Gestörte Gemüt) que reforça a ilusão dialética da razão pura, impedindo o doente de se ater à experiência e a juízos e conceitos de coisas que podem ser dadas aos sentidos, assim como levando-o a desejar compulsivamente compreender o incompreensível (por exemplo, desvendar o mistério da santa trindade ou, no caso de Dawkins, afirmar ex-catedra teses – ou seria defender causas? - que estão além dos limites da racionalidade científica, acreditando, inclusive, que está investido de uma autoridade intelectual que, de fato, não possui ). Mais: acho até que o nosso Dr. Mabuse também sofre de delírio ou demência (Wahnsinn), que é a tendência inversa, mas não incompatível com a vesânia, a atribuir falsas propriedades a objetos da percepção por conta de representações forjadas numa imaginação que se perde em si mesma. Trata-se da incapacidade de ir do universal ao particular e, portanto, de uma ilusão da particularidade, típica da mente paranóica. Essa enfermidade, no mínimo, explica por que Dawkins se arroga julgar a fé alheia, que lhe é estranha (projetando nos outros a própria fantasmagoria), e censurar doutrinas religiosas, que ele ignora completamente( imputando-lhes a própria charlatanice), a partir dos seus sentimentos mesquinhos perante a existência. Que Deus tenha piedade dessa pobre alma!
* Daí que Deus pode ser metafisicamente concebido como uma realidade suprema, isto é, uma substância perfeita, imutável e, portanto, em si e por si absolutamente determinada (ato puro), de onde emanam o ser, a unidade, a verdade e a bondade que, como transcendentais, convêm a todos os demais entes, dos quais Deus é causa primeira.
** A firme e resoluta disposição do arbítrio para realizar, à revelia dos fins contingentes da inclinação sensível, esses fins que são ao mesmo tempo deveres, chama-se virtude, disposição sem a qual seriam impossíveis ações livres.
*** A existência de um Deus soberano, onisciente, criador de todas as coisas e ordenador moral do mundo, embora não possa ser demonstrada (pois, para isso, nos faltam razões objetivas suficientes, caso em que afirmá-la ou negá-la é mera opinião), deve ser desejada, e este assentimento, que se chama fé, se apóia em razões subjetivas suficientes (oriundas do sentimento moral) e se coaduna com um saber prático objetivamente válido (cujo princípio supremo, o imperativo categórico, é constitutivo da razão pura). Assim, uma doutrina que tenha Deus por objeto só pode ser uma teologia moral.
****Se há um consenso (con-sensus) entre os filósofos da ciência, ele é fruto da consciência (con-scientia ) de que as proposições ditas científicas devem, em princípio, ser falsificáveis e de que a verificabilidade equivale à possibilidade de submetê-las a testes experimentais.
***** Temos, também, um motivo para afirmar a existência dessa realidade espiritual ontológica e moralmente superior a nós: a consciência, da qual Dawkins está irremediavelmente privado, de nossa finitude e vulnerabilidade, assim como de que o homem é o fim último da criação e, portanto, de que é um dever moral de cada um buscar a perfeição de sua vontade, isto é, a santidade.
23 de setembro de 2007
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