Uma exegese, feita pelo impagável Adolar Gangorra, do hino infanto-juvenil do guru da geração coca-cola Renato Russo.
O falecido Renato Russo era, sem dúvida, um ótimo músico e um excelente letrista. Escreveu verdadeiras obras de arte cheias de originalidade e sentimento. Como artista engajado que era, defendia os pontos de vista nos quais acreditava em suas letras. E por isto mesmo, talvez alguns deles excedam a lógica e o bom senso. Como no caso da música “Eduardo e Monica”, do álbum “Dois” da Legião Urbana, de 1986, onde a figura masculina (Eduardo) é tratada sempre como alienada e inconsciente enquanto a feminina (Monica) é a portadora de uma sabedoria e um estilo de vida evoluidíssimos.
Analisemos o que diz a letra. Logo na segunda estrofe, o autor insinua que Eduardo seja preguiçoso e indolente (Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar: Ficou deitado e viu que horas eram) ao mesmo tempo em que tenta dar uma imagem forte e charmosa à Monica (enquanto Monica tomava um conhaque, Noutro canto da cidade, Como eles disseram.). Ora, se esta cena tiver se passado de manhã como é provável, Eduardo só estaria fazendo sua obrigação: acordar. Já, Mônica, revelaria-se uma cachaceira profissional, pois virar um conhaque antes do almoço é só para quem conhece muito bem o ofício.
Mais à frente, vemos Russo desenhar injustamente a personalidade de Eduardo de maneira frágil e imatura (Festa estranha, com gente esquisita). Bom, “Festa estranha” significa uma reunião de porra-loucas atrás de qualquer bagulho para poderem fugir da realidade com a desculpa esfarrapada que são contra o sistema. “Gente esquisita” é basicamente, um bando de sujeitinhos que tem o hábito gozado de dar a bunda após cinco minutos de conversa. Também são as garotas mais horrorosas da Via-Láctea. Enfim, esta a tal “festa legal” em que Eduardo estava. O que mais ele podia fazer? Teve que encher a cara para poder suportar aquele pesadelo, como veremos a seguir.
Assim temos: (-Eu não estou legal Não agüento mais birita.) Percebe-se que o jovem Eduardo não está familiarizado com a rotina traiçoeira do álcool. É ainda um garoto puro e inocente, com a mente e o corpo sadios. Bem ao contrário de Mônica, uma notória bêbada sem vergonha do underground.
Adiante, ficamos conhecendo o momento em que os dois protagonistas se encontraram (E a Monica riu e quis saber um pouco mais sobre o boyzinho que tentava impressionar). Vamos por partes: em “E a Monica riu”, nota-se uma atitude de pseudo-superioridade desumana de Monica para com Eduardo. Ela ri de um bêbado inexperiente! A diante, é bom esclarecer o que o autor preferiu maquiar. Onde se lê “quis saber um pouco mais” leia-se “quis dar para”! É inaceitável tentar passar uma imagem sofisticada da tal Monica. A verdade é que ela se sentiu bastante atraída pelo “boyzinho que tentava impressionar”! Há um certo preconceito em se referir ao singelo Eduardo como “boyzinho”. Não é verdade. Caso fosse realmente um playboy, ele não teria ido se encontrar com Monica de bicicleta, como consta na quarta estrofe (Se encontraram então no parque da cidade. A Monica de moto e o Eduardo de camelo.) Se alguém aí age como boy, esta seria Monica, que vai ao encontro pilotando uma ameaçadora motocicleta. Como é sabido, aos dezesseis anos (Ela era de Leão e ele tinha dezesseis.) todo boyzinho já costuma roubar o carro do pai, principalmente para impressionar uma maria-gasolina como Monica. E tem mais: se Eduardo fosse mesmo um playboy, teria penetrado com sua galera na tal festa, quebraria tudo e ia encher de porrada o esquisitão mais fraquinho de todos na frente de todo mundo, valeu?
Na ocasião de seu primeiro encontro, vemos Monica impor suas preferências, uma constante durante toda a letra, em oposição a humilde proposta do afável Eduardo (O Eduardo sugeriu uma lanchonete Mas a Monica queria ver o filme do Godard.). Atitude esta, nada democrática para quem se julga uma liberal. Na verdade, Monica é o que convencionou chamar de P.l.M.B.A. (Pseudo lntelectual Metida à Besta Associado, ou seja, intelectuerdas, alternativos e esquisitões vestidos de preto em geral), que acham todo filme americano é ruim e o que é bom mesmo é filme europeu, de preferência francês, preto e branco, arrastado pra caralho, e com bastantes cenas de baitolagem.
Em seguida, Russo utiliza o eufemismo “menina” para se referir suavemente à Monica. (O Eduardo achou estranho e melhor não comentar Mas a menina tinha tinta no cabelo.). Menina? Pudim de cachaça seria mais adequado. À pouco vimos Monica virar um Dreher na goela logo no café da manhã e ele ainda a chama de menina? Além disto, se Monica pinta o cabelo é porque é uma balzaca querendo fisgar um garotão viril ou porque é uma baranga safada impregnada de luxúria.
O autor insiste em retratar Monica como uma gênia sem par (Ela fazia Medicina e falava alemão) e Eduardo como um idiota retardado (E ele ainda nas aulinhas de inglês.). Note a comparação de intelecto entre o casal: ela domina o idioma germânico, sabidamente de difícil aprendizado, já tendo superado o vestibular altamente concorrido para medicina. Ele, miseravelmente, tem que tomar aulas para poder balbuciar “iéis”, “nou” e “mai neime is Eduardo”! Incomoda a forma como são usadas as palavras “ainda” e “aulinhas”, para refletir idéias de atraso intelectual e coisa sem valor, respectivamente. Coitado do Eduardo, é um jumento mesmo…
Na seqüência, ficamos a par das opções culturais dos dois (Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus, De Van Gogh e dos Mutantes, De Caetano e de Rimbaud). Temos nesta lista um desfile de ícones dos P.l.M.B.A.s, muito usados por quem acha que pertence a uma falsa elite cultural. Por exemplo, é tamanha uma pretensa intimidade com o poeta Manuel de Souza Carneiro Bandeira Filho, que usou-se a expressão “do Bandeira”. Francamente, “Bandeira” é aquele juiz que fica apitando impedimento na lateral do campo. A saber: o sujeito mais normal dessa moçada aí, cortou a orelha fora por causa de uma sirigaita qualquer. Já viu o nível, né? Só porra-louca de primeira.
Mais uma vez insinua-se que Eduardo seja um imbecil acéfalo (E o Eduardo gostava de novela) e crianção (e jogava futebol de botão com seu avô.). A bem da verdade, Eduardo é um exemplo. Que adolescente de hoje costuma dar atenção a um idoso? Ele poderia estar jogando videogame com garotos de sua idade ou tentando espiar a empregada tomar banho pelo buraco da fechadura, mas não. Preferia a companhia do avô em um prosaico jogo de botões! É de tocar o coração! E como esse gesto magnânimo foi usado na letra? Foi só para passar a imagem de Eduardo como um paspalho energúmeno. É óbvio, para o autor, o homem não sabe de nada. Mulher, sim, é maturidade pura!
Continuando, temos (Ela falava coisas sobre o Planalto Central, Também magia e meditação.). Falava merda, isto sim! Nesses assuntos esotéricos é onde se escondem os maiores picaretas do mundo. Qualquer chimpanzé lobotomizado pode grunhir qualquer absurdo que ninguém vai contestar. Por que? Porque não se pode provar absolutamente nada. Vale tudo! É o samba do crioulo doido. E quem foi cair nessa conversa mole jogada por Monica? Eduardo, é claro, o bem intencionado de plantão. E ainda temos mais um achincalhe ao garoto (E o Eduardo ainda estava no esquema “escola-cinema-clube-televisão”.). O que o sr. Russo queria? Que o esquema fosse “bar da esquina - terreiro de macumba - roda de capoeira - delegacia” ? E qual é o problema de se ir a escola, caralho?
Em seguida, já se nota que Eduardo está dominado pela cultura imposta por Mônica (Eduardo e Monica fizeram natação, fotografia, Teatro e artesanato e foram viajar.). Por ordem: 1) Teatro e artesanato não costumam pagar muito imposto. 2) Teatro e artesanato não são lá as coisas mais úteis do mundo. 3) Natação e fotografia? Porque os dois não foram estudar para o concurso do Banco do Brasil? Vagabundos…
Agora temos os versos mais cretinos de toda a letra (a Monica explicava p’ro Eduardo Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar:). Mais uma vez, aquela lengalenga esotérica que não leva a lugar nenhum. Vejamos: a Monica trabalha na previsão do tempo? Não. Monica é geóloga? Não. Monica é professora de química? Não. Monica é alguma aviadora? Também não. Então o que diabos uma motoqueira transviada pode ensinar sobre céu, terra, água e mar que uma muriçoca não saiba? Novamente, Eduardo é tratado como um debilóide pueril capaz de comprar alegremente a torre Eiffel, após ser convencido deste grande negócio pelo caô mais furado do mundo. Santa inocência…
Ainda em, (Ele aprendeu a beber,), não precisa ser muito esperto para sacar com quem… é claro, com Monica, a campeã do alambique! Eduardo poderia ter aprendido coisas mais úteis como o código Morse ou as capitais da Europa, mas não. Acharam melhor ensinar para o rapaz como encher a cara de pinga. Muito bem, Monica! Grande contribuição! Depois temos (deixou o cabelo crescer). Pobre Eduardo! Àquela altura, estava crente que deixar crescer o cabelo o diferenciaria dos outros na sociedade. lsso sim é que é ativismo pessoal. Já dá pra ver aí o estrago causado por Monica na cabeça do iludido Eduardo.
Sempre à frente em tudo, Monica se forma quando Eduardo, o eterno micróbio, consegue entrar na universidade (E ela se formou no mesmo mês Em que ele passou no vestibular.). Por esse ritmo, quando Eduardo conseguir o diploma, Monica deverá estar ganhando o seu oitavo prêmio Nobel. Outra prova da parcialidade do autor está em (porque o filhinho do Eduardo ‘tá de recuperação.). É interessante notar que é o filho do Eduardo e não de Monica, que ficou de segunda época. Em suma, puxou ao pai e é burro que nem uma porta.
O que realmente impressiona nesta letra é a presença constante de um sexismo estereotipado. O homem é retratado como sendo um simplório alienado que só é salvo de uma vida medíocre e previsível graças a uma mulher naturalmente evoluída e oriunda de uma cultura alternativa redentora. Nesta visão está incutida a idéia absurda de que o feminino é superior e o masculino, inferior. É sabido que em todas culturas e povos existentes, o homem sempre oprimiu a mulher. Porém isso não significa, em hipótese alguma, que estas sejam superiores do que os homens. São apenas diferentes. Se desde o começo dos tempos o sexo feminino fosse o dominador e o masculino o subjugado, vários erros também teriam sido cometidos de uma maneira ou de outra. Por que ? Ora, por que tanto homens, mulheres e colunistas sociais fazem parte da famigerada raça humana. E, como se sabe muito bem, é aí que sempre morou o perigo. Não importa quem seja: Monica ou Eduardo!
Adolar Gangorra tem 71 anos, é editor do periódico humorístico Os Reis da Gambiarra e não perde um show sequer dos “The Fevers” e do “Benito de Paula Cover”.
24 de outubro de 2007
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