23 de dezembro de 2007

Sobre fé e razão

Na postagem "Os quatro cavaleiros que dizem Ni...", escrevi: "Fé só tem lugar quando está ausente a certeza, que é um assentimento teórico, o que não quer dizer que a própria fé não possa ser objeto de reflexão e análise, as quais ajudam a compreendê-la,é verdade, mas que por si sós são incapazes de produzi-la ou mesmo de fortificá-la.[...]Pois fé é confiança na palavra dada, assentimento prático que, ao contrário da mera opinião e da certeza, não se refere diretamente às coisas, tendo que ver somente com a relação, im pacto, da vontade de quem promete com a vontade daquele a que se dirige a promessa. Pacto do homem com Deus ou, melhor, renovação da aliança da criatura com o Criador.Traduzido em termos da filosofia kantiana da religião, a razão prática pura é o Deus promitente agindo em nós; o bem supremo (a felicidade eterna sob a condição do exercício da moralidade), o prometido, e o arbítrio humano, o promissário".
Gostaria de aqui desenvolver mais as explicações acima, em especial aquelas que concernem a teses kantianas.
Quando afirmo que fé implica ausência de certeza, acabo dando margem à idéia de que fé exclui toda e qualquer segurança racional quanto a seu objeto e, por conseguinte, se constitui num assentimento débil, ao qual só se apega por fanatismo religioso. Não é isso que quero dizer. Para evitar essa possível confusão, esclareço o seguinte.

Opinião, fé e saber são, segundo Kant, tipos de assentimento. Este é o juízo - cuja propriedade objetiva é a verdade - enquanto ato cognitivo realizado pelo entendimento de um sujeito particular, ato subjetivo "pelo qual algo é representado como verdadeiro". O assentimento pode ser certo ou incerto.

Na certeza, o juízo é apodítico, isto é, temos consciência tanto da necessidade da inferência pela qual a proposição (que resulta do ato judicativo) é derivada de fundamentos, quanto da necessidade imediata e suficiência ( objetiva e subjetiva) dos próprios fundamentos. Estes podem ser ou empíricos ou racionais, na medida em que eles, respectivamente, se constituem ou em dados imediatos da percepção (incluiria aqui os dados obtidos experimentalmente, pois, para Kant, a certeza em torno dos objetos da experiência "é, ao mesmo tempo, empírica e racional, na medida em que é a partir de princípios a priori que conhecemos uma proposição empiricamente certa", por exemplo, os axiomas newtonianos do movimento) ou em conhecimentos que não carecem de prova, sendo imediatamente certos. Conhecimentos desse tipo ou são apreendidos diretamente pelo intelecto, caso em que são sempre verdadeiros, ou são simplesmente ignorados.Em suma, saber é certeza, e esta nada mais é que a convicção provocada, no sujeito que julga, pela demonstração, isto é, pelo mostrar que o predicado pertence necessariamente ao sujeito proposicional por força de razões objetivas e subjetivas suficientes.
Dessa caracterização do assentimento certo, segue-se uma definição geral de ciência, que, segundo Kant, "deve ser entendida como conjunto de um conhecimento como sistema, em oposição ao mero conhecimento comum, conjunto de um conhecimento como mero agregado. O sistema que repousa sobre a Idéia de um todo que precede as partes é o oposto do conhecimento comum, mero agregado de conhecimentos cujas partes precedem o todo". Nesse sentido, prossegue Kant, "há ciências históricas e ciências racionais". Note-se que, entendida assim, ciência é qualquer conhecimento obtido e exposto sistematicamente a partir de princípios, cabendo à metafísica (a fortiori, à teologia), pois, o posto supremo no elenco das ciências.
Mas a certeza - por conseguinte, a convicção - não é só de ordem lógica. Pode-se falar também numa convicção ou certeza prática. Se na certeza lógica ou puramente teórica, a suficiência subjetiva dos fundamentos decorre de "fundamentos de verdade objetivos, independentes da natureza e do interesse do sujeito", a certeza prática envolve exatamente o inverso: por conta de fundamentos subjetivamente suficientes, os quais serão explicados mais adiante, sou movido a uma "crença racional moral", que "é freqüentemente mais firme do que todo saber. No saber são também ouvidas as contra-razões, na crença, não, pois, aqui, não se trata de fundamentos objetivos, mas do interesse moral do sujeito".

Quais são esses fundamentos subjetivos suficientes que determinam o interesse moral do sujeito? Em primeiro lugar, cumpre distinguir a certeza prática do "saber histórico ou empírico mediato" , que "repousa sobre a confiabilidade dos testemundos. Entre os requisitos de uma testemunha irrecusável, estão a autenticidade (valor) e a integridade". Em segundo, salientar que a certeza prática não exclui fundamentos objetivos; ocorre apenas que estes, sendo insuficientes (do contrário, se trataria aqui de certeza lógica), não podem estar à testa da crença, que é um assentimento incerto que, porém, repousa tão-somente em fundamentos subjetivos suficientes. Por último, crença se distingue de opinião, que, embora também seja um assentimento incerto, tem por base fundamentos insuficientes, tanto objetiva quanto subjetivmente. Ambos, crença e opinião, ao contrário do saber, encerram a consciência de que aquilo a que damos assentimento é contingente e, portanto, da possibilidade do seu oposto. Só que, enquanto a opinião é um juízo problemático, a crença é um juízo assertórico, concernindo, pois, à representação de algo como efetivo, existente.

Todavia, a existência daquilo que é objeto de crença não pode estar desvinculado da vontade humana. Não do homem natural, mas do homem noumenon. Pois aquele, como diz o apóstolo Paulo, "não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente [...]. Porque, quem conhece a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo". Esta operou, no mundo sensível, sobre a consciência do homem através da história da humanidade, imprimindo-se nos corações com a narrativa bíblica do nascimento, paixão, morte e ressurreição do Filho do Homem ("a palavra da cruz") e edificando-se sob a forma vísivel da Igreja. Ocorre que a Graça divina não nos advém exteriormente, manifestando-se, antes, no poder do Amor, "que tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta", na medida em que "Cristo, o poder de Deus, a sabedoria de Deus", habita em nós. Nada realmente possuímos que não tenhamos recebido, e a existência é a nossa maior dádiva, aquela de que niguém pode nos subtrair sem cometer um crime contra Deus, pois, se tudo nos pertence, é porque nós somos "de Cristo, e Cristo de Deus".
A razão prática pura e sua lei suprema, o imperativo catgegórico, constituem-se, segundo Kant, na Graça, na ação de Deus diretamente sobre a consciência do indivíduo, ação sobrenatural cujo efeito primeiro é a "propensão à personalidade", que é "aptdão de sentir respeito pela lei moral, enquanto motivo suficiente por si determinação do arbítrio",por conseguinte, de ser movido ao cumprimento do dever. Sendo assim, embora a moralidade em nós não prove a existência de Deus, ela é, para os que verdadeiramente crêem, a fonte insecável de amor e esperança, marcas indeléveis na criatura deixadas pelo Criador, capazes de nos arrebatar deste mundo, de nos trazer consolação e paz em meio as amarguras e a certeza inquebrantável da salvação.

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