No referido artigo (para lê-lo na íntegra clique no título acima), Olavo de Carvalho apresenta e justifica a tese, tão ignorada quanto em si verdadeira, de que "o racismo é, por inteiro, uma criação da modernidade, das luzes, da mentalidade científica, ateística e revolucionária, e não das tradições religiosas que formam a base da nossa civilização". Nada teria a lhe acrescentar, não fosse a inclusão de Kant entre aquelas cabeças "iluminadas" comprometidas até a medula com a ideologia cientificista e, de certa forma, dedicadas à aniquilação dos valores morais e democráticos sedimentados nos mais anosos costumes dos povos europeus e em nossa longa tradição cristã. Conforme cita Olavo, Kant estava convicto de que “os negros da África, por natureza, não têm sentimentos acima da frivolidade”. Esta frase, se a memória não me falha, encontra-se em Antropologia de um ponto de vista pragmático, obra cujo propósito e cujo locus na filosofia moral de Kant foram examinados por mim num texto postado na seção "Artigos" deste blog.
Não é que deseje absolver Kant de tão grave acusação nem destacá-lo da mística revolucionário-progessista do Iluminismo ou mesmo fazê-lo herdeiro solitário da metafísica medieval, resgatada em sua dignidade e preservada em sua essência dentro dos "limites da pura e simples razão". Antes, gostaria apenas de esclarecer a posição do filósofo de Königsberg na história da ciência moderna, o que, espero, me permitirá mostrar o quanto a “filosofia da razão pura” se distancia do ateísmo militante e anti-religioso do positivismo científico.
Kant combate a metafísica em nome do inegável progresso científico observado a partir do século XVII, compactuando cegamente com os ideais iluministas e positivistas da época?
Resposta: Não.
A metafísica, segundo Kant, é um Faktum mesmo decorrente da natural propensão da razão humana a resolver problemas que emanam da sua própria estrutura interna, isto é, a ser arrastada a aporias e seduzida por “perguntas que a razão pura levanta para si mesma” e “que não podem ser respondidas por nenhum uso da razão na experiência nem por princípios daí tomados emprestados” (KrV, B21-22). Só que essa “propensão natural para a metafísica”, isto é, “a própria faculdade pura da razão” impõe também a cogente tarefa crítica de determinar, com certeza apodítica, se, e como, a razão pura pode resolver tais problemas. A tese básica da críticismo kantiano diz que a capacidade heurística da razão pura é finita, mas que esta, todavia, se obriga, por isso mesmo, a “alcançar uma certeza quanto ao saber ou não-saber dos objetos, isto é, ou decidir sobre os objetos de suas perguntas ou sobre a capacidade ou incapacidade da razão julgar algo a respeito deles, portanto, ou ampliar com confiança a nossa razão pura ou impor-lhe limites determinados e seguros” (Op. Cit., B 22). Em outros termos, a razão pura, no que tange aos problemas que ela própria engendra, tem que ou resolvê-los positiva e definitivamente ou provar a sua insolubilidade a partir de princípios verdadeiros a priori, o que equivale, segundo Kant, a se perguntar “como é possível a metafísica como ciência?” (Ibidem).
Esta última questão, a filosofia kantiana da razão pura responde da seguinte maneira. Sob o pressuposto do realismo transcendental, isto é, da tese semântica que diz que tempo e espaço são entidades auto-subsistentes e, por conseguinte, que o conceito de objeto em geral tem o mesmo significado e extensão que o conceito de coisa em si, a metafísica é impossível como ciência. Isto explica por que, segundo Kant, na metafísica tradicional, que tomou a lógica como único e exclusivo organon na investigação da natureza, “encontram-se sempre inevitáveis contradições” (Ibidem), cujo efeito mais patente foi a estagnação diante do seguro e vertiginoso avanço que a física sofreu desde os tempos de Galileu e Copérnico. Porém, se se adota o pressuposto do idealismo transcendental, que sustenta que tempo e espaço são meras condições formais da sensibilidade, isto é, de nossa receptividade para os fenômenos, classe de objetos que, junto com as coisas em si, dividem o conceito de objeto em geral, a metafísica nada mais é que uma teoria da exposição desses objetos dos sentidos em conceitos puros do entendimento, isto é, uma teoria das propriedades a priori sem as quais a própria experiência seria impossível. Nessa perspectiva, a metafísica, denominada por Kant filosofia transcendental (em substituição do "soberbo" nome "ontologia"), se restringe a fornecer um cânon material para a investigação da natureza conduzida através de experimentos imaginados segundo leis matemáticas do movimento, isto é, desenhados de acordo com conhecimentos sintéticos a priori e, na medida em que estes são demonstravelmente verdadeiros, em consonância com os princípios metafísicos da construção, na intuição pura, do conceito empírico de matéria, os quais, por sua vez, necessariamente pressupõem a estrutura formal dos fenômenos tal como determinada pelos princípios constitutivos (puros) do entendimento.
Assim, doutrina genuinamente científica é, para Kant, um sistema de proposições sintéticas teóricas (acerca da natureza) objetivamente válidas, que só podem ser obtidas com a solução experimental de problemas formulados à luz de princípios matemáticos verdadeiros a priori. Tanto na Crítica da razão pura quanto nos Princípios metafísicos da ciência da natureza, Kant procurou tão-somente fundamentar e explicar, nos quadros de sua lógica transcendental, a maneira de Newton formular e resolver problemas - com o auxílio de construtos imaginários, que pouco ou nada devem ao seu notório interesse por ocultismo, diria Irwing Bernard Cohen - acerca do movimento e das forças necessárias a produzi-lo, mas, em hipótese alguma, fornecer uma justificação, a título de verdades eternas, dos resultados axiomaticamente expostos nos Principia mathematica philosophia naturalis. Qualquer discurso que envolva proposições sintéticas teóricas cuja verdade, ou falsidade, não possa ser decidida dessa maneira, é um discurso sem significação objetiva, portanto, poder-se-ia dizer, puramente ideológico. Mais: que o discurso científico é verdadeiro apenas na medida em que, descrevendo a possibilidade empírica dos fenômenos, isto é, o comportamento possível dos eventos naturais, enuncia leis causais com base nas quais outros eventos da mesma espécie, e ainda assim sob certas condições empíricas matematicamente controladas, podem ser previstos. Fora desse âmbito, por exemplo, utilizado como fundamento explicativo dos fatos propriamente humanos, isto é, dos feitos da liberdade da vontade, o discurso científico se converte numa grande e manifesta falácia, vale dizer, em propaganda ideológica.
Se, por um lado, Kant prova que a metafísica realista é irremediavelmente incapacitada, no campo da teoria, de conhecer o que quer que seja acerca de objetos incondicionados, tais como Deus, alma e mundo (entendido como totalidade absoluta dos objetos humanamente concebíveis), por outro, ele subtrai esses objetos da sanha otimista, e muitas vezes messiânica, da moderna ciência matemática e experimental, cujo domínio legítimo - em que ela deve ficar confinada - é o dos objetos condicionados pela nossa humana sensibilidade. À ciência não cabe, sustenta Kant, sequer pensar neles (se caso não forem empregados na formulação de procedimentos heurísticos, de cuja eficácia também não podemos concluir que tais objetos existem), prerrogativa da metafísica, que, como vimos, é “efetiva [wirklich] como propensão natural [ naturlich Anlage] (metaphysica naturais)" e, nesse sentido, supre todas as mais elevadas e sinceras aspirações espirituais do homem.
Que a ciência, desde o século XVIII, tenha de fato se orientado segundo essas diretrizes epistemológicas de Kant, são outros quinhentos. Sabemos que não, sobretudo depois da emergência das ditas ciências humanas, que, embora não possuam qualquer autoridade intelectual ou moral para determinar o que o homem deve ou não fazer (a respeito de si mesmo, da sociedade e da natureza), pretendem destronar a metafísica, a religião e toda a cultura clássica do seu devido lugar na história da civilização ocidental, proclamando-se depositárias, quiçá por decreto divino, de uma nova e esotérica racionalidade.
O racismo, algo absolutamente desconhecido pelas religiões e pelo pensamento grego e medieval (nisso, pelo menos, Olavo está coberto de razão), é fruto dessa prepotência gnóstica de querer submeter a transcendência ao mesquinho horizonte da prosáica história humana, ou seja, dessa impiedosa têndência dos mortais de buscar conhecer e dominar tudo, generalizando, para este propósito, procedimentos metodológicos que foram eficazes somente num campo muito reduzido da realidade. Sobre a condição humana, o cristianismo e a cultura clássica têm muito mais a dizer de significativo e verdadeiro do que esse arremedo de ciência (tanto no sentido kantiano quanto no sentido mais geral de Aristóteles) praticado pela grande maioria dos antropólogos, historiadores, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos e gente como Richard Dawkins e outros picaretas "pós-modernos".
Enfim, Kant (assim como Schopenhauer, que, não obstante desaprove a escravidão como a marca indelével da maldade humana, considera os negros intelectualmente inferiores e incapazes de fazer qualquer coisa de relevante, seja na moral e na política, seja na economia e nas ciências) pode até ter dado ocasião à insanidade dessas mentes revolucionárias e anti-clericais, mas nem por isso reza na mesma cartilha dos Enciclopedistas, embrenhando-se numa “guerra cultural” contra o catolicismo e a fé cristã, ou pontifica uma reforma radical da natureza humana, fechando os olhos despudoradamente para o legado cultural dos antigos e prometendo, cinicamente, a instauração do Reino dos Céus aqui na Terra.
Kant, como quase todos os observadores externos, nutriu certa simpatia e até ergueu o cetro da filosofia pela Revolução francesa, mas, apesar do entusiasmo com que ela foi recebida e que, segundo a sua opinião, teve o mérito de revelar publicamente o sentimento moral da espécie humana(despertando o sentimento de respeito pelo direito natural em quem, desinteressadamente, assistia de fora a esse sangrento espetáculo político), foi um intransigente conservador, não deixando de reconhecer os efeitos deletérios, mesmo cruéis, da mentalidade revolucionária quando esta invade a vida cotidiana, dos lares às tavernas, e inocula o veneno da discórdia no coração do povo, o qual, arrebatado pelas Erínias, abandona o Deus da justiça, divide-se em facções e precipita-se fanaticamente contra a ordem estabelecida.
Kant sempre censurou o crime e a mentira!
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